O Brasil e o perdão (incluso o das dívidas dos países africanos).
Há alguns anos escrevi um artigo que criticava – "apenas" sob o ponto de vista jurídico/constitucional – decisões do então Presidente da República que resultavam no perdão total ou parcial de dívidas de países africanos, para com o Brasil. Naquele texto ponderei – e ainda mantenho as ponderações, neste aspecto – que a matéria deveria, ao menos, ser previamente comunicada ao Congresso Nacional (embora ainda ache que semelhante perdão de dívidas careceria de referendo deste mesmo Congresso), porque ali estão os (ao menos em tese) representantes do nosso povo (e se algum país tem dívida monetária para com o Brasil, tem-na para com o nosso povo, em última instância).
Hoje, este artigo vem para louvar mais uma atitude de perdão de dívidas africanas, para conosco. Desta feita, a Presidência da República brasileira decidiu perdoar cerca de R$900.000.000,00 (novecentos milhões de reais) que quase quinze países da África possuem, em relação ao Brasil. Se o valor parece grande demais, basta dizermos que não é nem a metade do que já foi gasto nos estádios para a Copa do Mundo de Futebol FIFA 2014...
A atitude brasileira não é nem a primeira nem a que perdoa maior soma de recursos financeiros, em benefício das nações mais pobres do mundo. Anos atrás, sob o governo de George Bush, nos EUA, e Tony Blair, na Inglaterra, os músicos/artistas Bob Geldof e Bono Vox conseguiram sensibilizar esses dois países e obtiveram (após muito esforço, reuniões, "'lobbies' do bem", shows de rock – o maior deles o Live Aid – e discursos) o perdão de grande parte das dívidas externas de países africanos. No entanto, os perdões feitos pelo Brasil, nos últimos anos, tem talvez maior peso moral, maior significado internacional e humanitário, porque é mais do que sabido que nossa riqueza e nosso nível de desenvolvimento sócio-econômico não se aproxima senão minimamente daqueles que EUA e GBR ostentam, mesmo em tempos de crise econômica mundial (basta vermos os cem milhões de dólares que, há dois meses, Obama destinou apenas para pesquisas científicas em torno do cérebro humano e suas potencialidades).
Nossa Constituição proclama, em seu emblemático preâmbulo:
"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL."
E nos parágrafos imediatos, elenca os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. E o artigo 4º prescreve que "A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais" pelo princípio (dentre outros) da "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade".
Naturalmente, há interesses e objetivos políticos e macroeconômicos, junto ao perdão em comento; ele reforça a imagem do país, não só entre as nações africanas; ele auxilia a entrada de empresas brasileiras, nos países agraciados com a remissão; ele favorece o aprimoramento de nossa balança comercial etc. etc. etc...
Mas quem disse que aquele que perdoa também não é beneficiado pela bondade concedida? Aliás, sob a ótica espiritualista – mais ainda sob a ótica cristã – aquele que perdoa é o maior beneficiado pela dádiva ofertada.
Nosso país tem uma tradição de perdão, de misericórdia. Não temos pena de morte (salvo em caso de guerra declarada e – perdoem-me por voltar ao tema – em caso de aborto por estupro e/ou anencefalia ou risco de vida para a mãe), nem de banimento, nem perpétuas, nem de trabalhos forçados. Se somos pobres, nosso sistema de saúde pública é universalizado (algo que nem os ricos EEUU nem o carismático Obama conseguem implementar completamente, sem lutas políticas e jurídicas imensas). Se somos pobres, temos um programa de minimização dos efeitos da miséria (não importa que partido o criou). Se somos pobres, não recorremos às armas nucleares para impor medo aos países vizinhos. Se somos pobres, somos capazes de perdoar milhões em dívidas de outras nações...
Essa é a tradição brasileira. Essa é a natureza de nosso povo[1].